IMPASSE
DOUTRINÁRIO?
"Cada um é livre para encarar as coisas
à sua maneira, e nós, que reclamamos essa liberdade para nós, não podemos
recusá-la aos outros. Mas, do fato de que uma opinião seja livre, não se segue
que não se possa discuti-la, examinar-lhe o forte e o fraco, pesar-lhe as
vantagens ou os inconvenientes".
(Allan
Kardec - RE-1866)
“As opiniões são
contraditórias, mas isso não nos deve impressionar, pois opiniões não passam de
palpites, de pontos de vista individuais, sujeitos às idiossincrasias de cada
um. E Pitágoras, o criador do termo Filosofia, já afirmava que a Terra é a
morada da opinião”.
(J. Herculano Pires
[1])
Consoante o que
afirmou o filósofo Pitágoras, podemos afirmar, sem medo, que também a
erraticidade é a morada da opinião. Da mesma forma, não devemos nos assustar
com a disparidade de opiniões encontradas, pois sabemos que os Espíritos não
são divindades nem se tornam perfeitos pelo fato de abandonarem o veículo
corporal. A vantagem que hipoteticamente eles teriam, por estarem livres do
envoltório corporal, está em razão da sua posição na escala espírita, ou, como
se diz popularmente: da sua evolução espiritual.
É por isto
que, não cessamos de repetir sobre a importância do cuidado na análise das
informações vindas dos Espíritos independente do nome que assine. De outra
forma, também cabe ressaltar já no início deste texto que não estamos iniciando
nenhuma cruzada inquisitorial contra o médium Carlos Baccelli e o Espírito que
se denomina Inácio Ferreira. Estamos, antes de qualquer coisa, realizando a tão
propalada análise crítica preconizada pelo codificador e enfatizada pelos
Espíritos que o orientaram no trabalho de construção do edifício doutrinário
espírita.
O fato de ser esta
a quarta mensagem da autoria do Inácio a ser analisada se deve ao fato de o seu
conteúdo nos permitir um desenvolvimento oportuno da crítica literária espírita
iniciada por Kardec e que é dever de todos os Espíritas. Também vale mencionar
que, de fato, o que se analisa aqui é a opinião do Espírito Inácio e
sobre a qual o médium deve permanecer indiferente, dado que a sua função é ser
um mediador entre o autor espiritual e nós encarnados, da mesma forma que o
computador serve de mediador entre aquele que escreve e aquele que lê, por
exemplo [2].
Nesta mensagem,
intitulada de Impasse Doutrinário [3], o referido Espírito afirma que
“na atualidade, o Espiritismo, através de seu Movimento, está vivenciando um
impasse doutrinário sem precedentes na sua recente história”. Impasse este
resultante, não de um questionamento dos seus princípios, mas, na opinião de
Ferreira, dos “perigosos rumos que vêm, de algum tempo a esta parte, sendo
impressos ao Movimento, por companheiros que, no que pese a sua boa intenção,
agem equivocadamente”.
Estes “perigosos
rumos” seriam dados por seres que, deslumbrados pelos poderes temporais,
estariam levando o Espiritismo para o caminho do elitismo. Esta acusação,
infundada, não é nova e continuará a ser usada toda a vez que houver um
conflito de ideias. E é bastante usada quando as ideias de determinados
Espíritos são avaliadas criticamente e questionadas em sua validade e
importância por apresentarem, muitas, equívocos insanáveis ou por ser, de forma
clara, obra de espíritos mistificadores.
Qualquer um pode
ser acusado de elitista. Basta, para isso, questionar algum destes Espíritos
tendo por base dados da Codificação e realizar um exame criterioso em busca de
coerência e lógica na opinião em análise. Basta também divulgar a importância
de um estudo metódico, profundo e perseverante dos cerca de dezoito livros
publicados por Allan Kardec e as valiosas obras complementares de autores como
Léon Denis, Gabriel Delanne, Camille Flammarion, Ernesto Bozzano, Alexander
Aksakof, entre os europeus e J. Herculano Pires, Deolindo Amorim, Carlos
Imbassahy, Hermínio C. Miranda, entre os escritores e pesquisadores
brasileiros.
E evocando os
feitos de Francisco de Assis, numa citação (ao que parece) textual da obra de
Emmanuel, Inácio questiona se da mesma forma que a doutrina cristã foi
deturpada por aqueles deslumbrados com a visão dos poderes temporais à época do
“iluminado da Úmbria”, não estaria o Espiritismo sendo deturpado na atualidade
por indivíduos “deslumbrados pelos poderes temporais” e se hierarquizando a
semelhança do cristianismo quando começou a se afastar da essência do
evangelho.
Até aqui, a não ser
pela palavra “hierarquizando”, que parece ser uma clara referência
aos trabalhos desenvolvidos pela Federação Espírita Brasileira, não conseguimos
divisar claramente nem quem são os alvos desta crítica feita pelo Inácio
Ferreira, nem quais são estes malfadados “poderes temporais”, embora todos
possam intuí-los. Provavelmente os deslumbrados são pessoas ligadas
aos trabalhos federativos e aqueles outros que realizam trabalhos de análise
crítica das obras dos Espíritos.
Contudo, mais à
frente alguns de seus alvos vão sendo delineados. Quando ele questiona se “não
estaríamos, a pretexto de pureza doutrinária, novamente incrementando a
censura, qual o equívoco em que a Igreja Católica ocorreu, quando, então,
chegou a instaurar o Tribunal do Santo Ofício, condenando os que não se
pautavam pela sua cartilha ideológica às fogueiras da Inquisição?!”, ele deixa
claro a quem se destinam suas acusações. Aos Espíritas que, como José Herculano
Pires, se propõem estudar de forma séria e continuada o Espiritismo e que ousam
questionar as informações vindas do mundo espiritual, justamente aquilo que a
maioria do movimento espírita brasileiro nunca foi ensinada a fazer. Ou seria
que todo aquele que resolve fazer crítica literária deve ser comparado com um
inquisidor do Tribunal do Santo Ofício.
A atitude de
publicar obras como o fez Herculano, questionando abertamente os ensinos de
Espíritos como Ramatís e acusar André Luiz de ser um neófito em Espiritismo
[4], deve ser equiparada á censura realizada pela Igreja Católica que inseria
os livros proibidos no seu Índex Prohibitorum? Com pretexto de impedir a
censura não estaria ele censurando a saudável e imprescindível crítica
literária espírita, já quase inexistente em nosso movimento espírita nacional? Não
seria este um exagero desnecessário?
Ou seria esta
justamente a atitude de desviar o foco das necessárias análises das informações
dos Espíritos sob o falso pretexto de que quem assim se comporta estaria
deixando de ser caridoso e de se preocupar com a famosíssima ‘reforma íntima’?
Estes são questionamentos que considero pertinentes e que são válidos ante a
retórica vazia do Inácio. Vazia porque generaliza uma acusação que seria
correta se direcionada para alguém, mas, posta da forma em que foi colocada
acusa todos aqueles que defendem a pureza doutrinária de serem pessoas
elitistas, apegadas aos “deslumbrantes poderes temporais” e de não serem caridosos
nem preocupados com a reforma íntima. E o pior, quer passar a impressão de que
pureza doutrinária seria o mesmo que censura o que é um absurdo.
Equívoco também é a
atitude de chamar estes mesmos críticos literários de pessoas insensíveis e de
afirmar que querem transformar o Espiritismo em Teologia. Eu, particularmente,
não entendi esta parte. O queria dizer com isto o Inácio? Teologia, em sua
etimologia, significa “a ciência que estuda a divindade” e, por definição, o
Espiritismo possui em seu corpo doutrinário uma ‘teologia’ própria, mais
especialmente em O Livro dos Espíritos (capítulo 1) e A Gênese (capítulo 2). A
não ser que ele queira se referir a alguma questão de ordem prática, esta
afirmação não se sustenta no plano teórico. Por si só, um estudo teológico
sério e profundo tende mais a nos aproximar do divino, e em consequência
alterar para melhor nosso caráter, do que o contrário. Como o leitor deve estar
percebendo, a mensagem do Inácio Ferreira possui um caráter desnecessariamente
alarmista e com pouca coerência, não apresentando de forma clara o que deseja
expressar. Ou, talvez, seja justamente este o objetivo dele...
Entretanto, ainda
existem dois parágrafos que pedem uma análise, mesmo que sucinta. O penúltimo
diz assim: “Concitamos, pois, aos sinceros partidários da Doutrina a que não
tornem a cometer o erro da omissão, quando, nas lides do Cristianismo, optaram
pelo silêncio comprometedor, cujas consequências espirituais se fizeram sentir
para a Humanidade no curso da História”. Aqui o primeiro erro é supor que os
mesmos partidários da Doutrina Espírita na atualidade são espíritos
reencarnados que viveram e aderiram aos ideais revolucionários do então
nascente Cristianismo. É o mesmo erro cometido por todo neófito em Espiritismo
que supõe ter sido alguma figura famosa ou importante no passado, ou que,
também, poderia ter sido algum mártir devorado por leões no coliseu romano.
Portanto, quem errar hoje, não necessariamente será por ter sido omisso aos
tempos do cristianismo nascente. Ser omisso hoje é dizer-se espírita sem saber
o que, de fato, significa ser espírita! Ser omisso hoje é conhecer os
princípios filosóficos espíritas e não aplica-los à análise das informações dos
Espíritos. Ser omisso hoje, é permitir a difusão de equívocos com relação à
interpretação e prática espírita e ficar calado porque o difusor é um
palestrante ou médium famoso e poderia ser acusado de não ser caridoso. A lista
poderia continuar, mas, imaginamos que os exemplos são suficientes.
O último parágrafo
apresenta um argumento coerente e que tem a finalidade de dar, normalmente,
maior autoridade ao que se fala. É o tipo de argumento que ninguém contesta,
justamente por ser óbvio demais. Ele diz assim: “Em defesa da Verdade, não há
necessidade de agressividade na opinião e, muito menos, na conduta, mas
imprescindível se torna a postura coerente com os Princípios abraçados, no
testemunho solitário da fé, porque, conforme nos disse o Cristo, “nem todos os
que dizem: Senhor! Senhor! Entrarão no reino dos céus; apenas entrará aquele
que faz a vontade de meu Pai, que está nos
céus”!”...
O argumento é
coerente e possui validade pelo simples fato de que isso realmente acontece no
movimento espírita. Muitos indivíduos, a pretexto de ‘defesa de opinião’, agem
de forma agressiva, impositiva, violenta. Não concorda em ser contestado e,
muito menos, em perder o status (ilusório) que supunha possuir. Experiências
deste tipo são comuns em centros onde o diálogo e o estudo é escasso, onde
existe a figura, mesmo que fictícia, de alguém que se ache ‘dono do centro’, seja pelo seu poder econômico, seja por uma
suposta autoridade advinda ou da sua mediunidade ou do tempo que possui de
frequência na casa.
Também é muito
comum em discussões na internet ou em redes sociais, onde as pessoas se
escondem atrás de máscaras e perfis fakes para poderem expor o que são de
verdade, criando intrigas, difamando, debatendo e ridicularizando quem pensa
diferente. Existe uma imensa maioria que age corretamente, tanto doutrinariamente
quanto moralmente, mas, infelizmente, os maus elementos existem em todos os
lugares. Cabe salientar, ainda, que este tipo de atitude não é especial dos que
buscam defender a pureza doutrinária, antes, é algo natural de espíritos ainda
imaturos e que não conhecem o poder do diálogo e da autoridade moral.
Recentemente, ficamos sabendo de um caso de uma leitora que escreveu para uma
editora questionando a validade da publicação de uma determinada obra e recebeu
como resposta sarcasmos e ironias, justamente daqueles que defendem as ideias
deste Espírito que está sendo analisado.
O que podemos
concluir desta pequena análise feita sobre a mensagem ‘Impasse Doutrinário’ é
que o risco de elitização e hierarquização pelo qual supostamente estaria
passando o Espiritismo não é culpa dos hipotéticos defensores da pureza
doutrinária empolgados pela “visão dos poderes temporais”, mas, pela omissão de
todo e qualquer indivíduo que se permite envolver nos problemas naturais do
convívio humano e do seu processo de desenvolvimento tanto social, quanto
técnico, biológico e espiritual. Omissão é uma atitude de indiferença, de
fuga da responsabilidade que lhe cabe como indivíduo interexistencial e não o
contrário. Quando um indivíduo se posiciona ele não está sendo omisso, em
hipótese alguma. Ele pode se equivocar, mas, nunca estará sendo omisso.
Compreendendo,
também,impasse como uma “situação que não oferece saída favorável” [5], o
que se pode observar é que o verdadeiro impasse está na situação criada (e
defendida, ao que parece, pelo Inácio) em que nenhum espírito pode ser alvo de
análises críticas sem que o autor destas análises seja logo taxado de ‘pessoa
insensível’ e ‘deslumbrada com a visão dos poderes temporais’, ou ainda
elitista. Em nosso país, criou-se uma cultura de ‘santidade’ aos médiuns e
aos Espíritos que não condiz com os mais básicos princípios doutrinários
da Doutrina. Pior ainda, qualquer esforço de análise crítica corre o risco
de ser taxado como falta de caridade para com os autores espirituais e os seus
médiuns, como se a postura do Espírita tivesse de ser passiva, acrítica,
acomodada ao que os outros dizem.
É justamente esta
cultura que permite que um Espírito faça comparações como as que o Inácio fez,
ao tentar convencer o leitor de que a atitude crítica gerada pela compreensão e
defesa da pureza doutrinária, não sendo nada mais que uma postura gerada pela
compreensão dos postulados espíritas, por exemplo, seria a mesma que motiva as
atitudes de censura, como as da Inquisição ao criar o Tribunal do Santo Ofício
e o Índex Prohibituron. E para finalizar, os que entrarão no “reino dos céus”
não são os que fingem santidade, mas, os que vivem autenticamente os postulados
da Doutrina dos Espíritos de forma integral, defendendo ou não a pureza
doutrinária!
Referências
[1] PIRES, J. Herculano. Introdução a Filosofia
Espírita. 1ª ed. Ed.
Paidéia, 1983, p.
[2] Para maiores informações vide o artigo Os Médiuns
são os Intérpretes dos Espíritos, partes I e II.
[3] Texto integral disponível em: http://inacioferreira-baccelli.zip.net/arch2012-07-01_2012-07-31.html
[4] Pires, J. Herculano. Vampirismo. 9ª ed. 2003, Ed.
Paidéia, p. 21: “O Espiritismo estaria sujeito á mais completa deformação, se
os espíritas se entregassem ao delírio dos caçadores de novidades. André Luiz
manifesta-se como um neófito empolgado pela doutrina, empregando às vezes
termos que destoam da terminologia doutrinária e conceitos que nem sempre se
ajustam aos princípios espíritas”.
[5] Definição de impasse retirada do site: http://www.dicio.com.br/impasse/
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